A arte de escrever personagens - Parte 3

Esse post é continuação dos posts de duas semanas atrás. O link está aqui.
Recebi algumas mensagens de leitores que tiveram dificuldades em fazer uso dos arquétipos da Jornada do Herói para construção dos personagens. Como eu havia enfatizado no post anterior, os arquétipos devem somente ser utilizados como ponto de partida para a criação da dinâmica dos personagens, sob risco de ficarem rasos, sem profundidade e prejudicarem a estrutura da narrativa.
Se você estava montando um grupo de personagens e parou para estudar os arquétipos-bases, apontados por Chris Vogler no livro "A Jornada do Escritor", é possível que tenha terminado com algo parecido com isso:

Se a história que você tem em mente para a Alice é uma trama épica em que a heroína passa pelos passos clássicos da Jornada do Herói, talvez essa distinção já queira lhe dizer muita coisa. E a Jornada do Herói continua tendo a sua utilidade, tendo em vista que muitos sucessos de venda a utilizam como base (Star Wars, Jogos Vorazes, Harry Potter).
Agora, se o que você planeja é escrever um conjunto de personagens diferentes entre si cuja dinâmica é o principal motor da história, algo como o antigo seriado "Friends", você deve estar perguntando: "exatamente no quê esses arquétipos vão me ajudar?"
Absolutamente nada é uma resposta bem racional. Mas não se desespere. Há luz no fim do túnel.
Muito Além dos Arquétipos
Os arquétipos da Jornada do Herói são tidos como os mais básicos em storytelling. Mas eles não são os únicos. Os arquétipos possuem uma abrangência ampla, de forma a abarcar uma infinidade de personalidades diferentes. É o contrário de estereótipo, no qual a personalidade dos indivíduos é reduzida para se encaixar naquela determinada descrição.
Usando os arquétipos como base, no caso acima, seria bem melhor substituí-los por arquétipos mais úteis de acordo com o gênero da nossa narrativa. Por exemplo:

Bem mais útil, não é mesmo? De qualquer forma, estamos utilizando arquétipos-base para começar a enxergar a dinâmica dentre os personagens, o procedimento é o mesmo desde que você não se limite ao que é ditado pelo arquétipo.
Os próximos passos são identificar nos personagens os atributos que nos façam reconhecê-los como pessoas reais. Quanto mais descrevermos cada um deles, da maneira mais específica que conseguirmos, mais eles saltam para fora do texto e adquirem uma vivência real.
E para assegurar a dinâmica entre o grupo de personagens, sugiro visualizar o que é específico de cada um, um do lado do outro. Assim, quando for criar as qualidades de cada um, vai ter certeza que são diferentes e que há contraste dramático entre eles. Por exemplo:

E aos poucos os personagens vão saltando do papel. Mexa e remexa nos atributos que você definir a cada um, até que pareçam o mais originais possíveis. Nessa fase de brainstorming é que asseguramos que os personagens serão realmente únicos.
Próximo passo, dar a cada um deles falhas de caráter que sejam tanto motor de tramas quanto de piadas. Na minha opinião, esta é a fase mais divertida da criação de personagens. Falhas são muito mais interessantes do que qualidades.

E assim vai. Usando os arquétipos como base, vamos delineando os atributos de cada um dos personagens, ao mesmo tempo garantindo que eles sejam diferentes entre si. O exercício é de brainstorming e não há regras. Os limites são da sua imaginação.
Você continua a fazer todos os detalhes que acha importante antes de planejar a trama da sua história. Desse grupo em específico eu dei profissão, um segredo e uma motivação para cada um. O resultado final foi esse:

Parece até que eles já são vizinhos, não é mesmo? Partindo de arquétipos-base, sem nos limitar a eles, é possível trabalhar em cada um deles por tentativa e erro até que os personagens fiquem diferentes o suficiente e reais o suficiente.
Diferente do que quando começamos, com seis personagens agora bem definidos, é possível imaginar qualquer tipo de trama que envolvesse, nos mais diferentes gêneros. O elenco acima foi criado com uma comédia de situação tipo Friends na cabeça, mas poderiam ser os personagens em um filme de aventura, de terror, de drama.
Com os personagens na cabeça, os próximos passos são identificar possíveis pontos de conflito entre eles, e a partir daí, elaborar as tramas que serão abordadas, seja em um único episódio, ou sejam em vários. Mas esse é um post para outra semana.
Independente de tudo, continue a escrever.
"O escritor profissional é o escritor amador que nunca desistiu." Richard Bach