A arte de escrever personagens – Parte 2

Este post é continuação do da semana passada. Caso ainda não o tenha lido, sugiro que o faça antes de prosseguir com a leitura. O link está aqui.
Semana passada conversamos que os personagens são o elemento mais importante da estrutura dramática. Se não há personagens, não há história. Vimos também que as melhores tramas são as que são construídas especificamente para testar as particularidades do seu personagem principal – suas habilidades, suas falhas de caráter, seus problemas pessoais. O que faz do herói que você inventou a pessoa certa para lidar com os eventos da trama que você planejou?
Também falamos que a função dos protagonistas é de servirem como âncoras emocionais para os leitores. Os melhores heróis são aqueles com os quais nos conectamos, pelos quais torcemos frente às adversidades e sofremos quando eles perdem um ente querido. E para garantir essa conexão, temos que criar personagens que nos pareçam reais. E humanos, na realidade, são complexos e, em sua grande maioria, contraditórios, mas isso é assunto para outro post. Por enquanto, vamos nos ater ao básico.
Criando um conjunto de personagens
Então você pegou um dos métodos de criação de personagem e fez um mini-dossier com suas descrições básicas. Sabe a profissão do seu personagem principal, sua idade, suas forças, fraquezas e problemas pessoais. Já está ficando mais nítido, não está? Se você fechar os olhos e chamar pelo nome, pode até enxergar seu personagem interagindo com você. Assim, a menos que você esteja planejando uma história com apenas um personagem (seu conflito pode estar em sobreviver às forças da natureza, p. ex.), está na hora de você descrever outros personagens com os quais o seu herói vai interagir durante a história.
O mesmo processo de criação pode ser seguido para inventar os personagens secundários e os antagonistas. Se você tiver paciência e imaginação suficiente, pode bolar cada detalhe dos personagens com antecedência fazendo questão que eles sejam diferentes entre si. Muitos escritores possuem prazer em desenhar cada minúsculo detalhe de seus personagens. Mas, se você é como eu e precisa ver os personagens em ação interagindo com obstáculos e pessoas antes de chegar à conclusão sobre quem eles são de verdade, vai perceber que descrever cada detalhe de cinco ou seis personagens é uma tarefa árdua e extremamente dolorosa.
Minha sugestão é você começar utilizando uma das mais poderosas ferramentas para criação de personagens do seu cinturão de utilidades de escritor: os Arquétipos.
Os Oito Arquétipos da Jornada do Herói
No livro O Herói de Mil Faces, publicado originalmente em 1949, o antropólogo Joseph Campbell analisou centenas de mitos e lendas das mais diversas culturas e eras da humanidade, chegando à conclusão de que compartilhavam em maior ou menor grau de uma fórmula. Esta fórmula ficou famosa no mundo dos escritores de ficção como A Jornada do Herói ou Monomito, e influenciou e continua influenciando diretamente milhares de histórias populares, como Star Wars e Harry Potter.
Christopher Vogler, em seu livro "A Jornada do Escritor: Estrutura Mítica para Escritores", mesclou o conceito de arquétipos do trabalho do psicólogo Carl Gustav Jung com o trabalho de Campbell e reconheceu na Jornada do Herói a recorrência de oito arquétipos de personagens. Arquétipos, ao contrário de estereótipos, não descrevem detalhes dos personagens nem os limitam, mas apenas reconhecem a função predominante de cada personagem no desenvolvimento de uma narrativa.
Dependendo do gênero da sua história, existem centenas de arquétipos de personagens possíveis de ser escolhidos. O interessante dos arquétipos descritos por Vogler, no entanto, são de funcionar como ponto de partida para que autores possam criar seu conjunto de personagens. São os oito arquétipos reconhecidos por Vogler:
1) O Herói

O herói é o personagem principal. É através dos olhos do herói que o leitor vai viver aquela aventura, e por isso é imprescindível que se conecte e identifique com ele. Durante a jornada, o herói abandona sua zona de conforto e vai enfrentar um mundo desconhecido, aonde ele vai ter de enfrentar obstáculos e vai ser testado tanto internamente quanto externamente. Junto com o leitor, o herói vai evoluir com suas qualidades e defeitos e conquistar (ou não) seus objetivos.
A maior parte dos protagonistas se encaixam na função do herói. Heróis são plenamente reconhecidos pela capacidade que possuem de cometer sacrifícios em nome de um bem maior.
Uma dica de mestre – certifique-se de que seus heróis sejam proativos e que empurrem a trama para a frente. Tomem decisões. Sejam ativos. Protagonistas passivos e sem motivação são por definição monótonos e seus leitores vão se cansar deles uma hora ou outra.
2) O Mentor

O mundo novo que o herói visita é cheio de perigos e ele precisa aprender a sobreviver o mais rápido possível. É aqui que surge a figura do mentor, que já possui conhecimento sobre como o mundo novo funciona e ensina ao herói a utilizar as habilidades que ele já possui ou que pode adquirir. Na definição clássica da Jornada do Herói, o mentor costuma entregar ao herói um item novo, uma arma ou habilidade nunca utilizados para ampará-lo na sua jornada.
Na maior parte das vezes a figura do mentor é transitória e desaparece no decorrer da jornada. O herói precisa vencer por si só, sem maiores ajudas do mentor. Alguns exemplos da literatura e cinema: Gandalf, Obi-wan Kenobi, Morpheus do Matrix.
3) O Aliado

Os desafios no caminho do herói serão árduos, muitas vezes árduos demais para serem enfrentados pelo herói sozinho. Os protagonistas precisam de alguém que consiga distrair os guardas, tenha habilidade de se infiltrar no sistema de segurança, ou mesmo que esteja lá para oferecer um ombro para chorarem. Além do mais, a história pode vir a ficar meio chata se os heróis não possuem pessoas legais para interagirem.
Aliados tendem a possuir qualidades que os heróis não possuem e que os ajudem a enfrentar seus obstáculos. São exemplos clássicos Samwise Gamgee de O Senhor dos Anéis, Robin do Batman, o Homem de Lata em O Mágico de Oz.
4. O Arauto

Na definição clássica do Monomito, o Arauto aparece no início da jornada e tem a função de anunciar a mudança inevitável que a história vai trazer ao herói. Pode anunciar o perigo iminente de terras distantes, mas pode ser também aquele que faz o herói perceber que a vida não está do jeito que ele almeja.
A função do Arauto é a máscara que reveste o próprio Incidente Incitante na dramaturgia, o catalizador que põe a história em movimento. Muitas vezes o Arauto sequer é um personagem, mas apenas um evento que obriga o herói a enfrentar seus obstáculos. O aparecimento das naves alienígenas em A Chegada ou Independence Day, são exemplos de como eventos podem possuir a função do Arauto sem estar vinculados a um personagem. Exemplos de personagens que se enquadram na figura do Arauto: R2D2 no primeiro Star Wars, Effie no Jogos Vorazes.
5. O Pícaro

O Pícaro é o alívio cômico, aquele que adiciona humor à jornada do herói. Não importa o quão sombria ou emocionalmente tensa a história pode ter ficado; sempre há espaço para nos lembrarmos que é importante ser capaz de rir de nós mesmos. O Pícaro, então, fornece ao leitor o escape emocional necessário e dá força para continuar a aventura. Pícaros também são excelentes em prover ao herói novas perspectivas sobre os problemas da história.
Dobby, de Harry Potter, é um exemplo de Pícaro clássico. Ele tem boas intenções, mas as ajudas que ele oferece a Harry costumam atrapalhar mais do que ajudar. E cada vez que ele aparece, faz trapalhadas que servem como um alívio cômico, mas o fato de ele ser um escravo até hoje lembra a Harry de que o status quo precisa ser mudado. Outros exemplos: Merry e Pippin de Senhor dos Anéis, Timão e Pumba de Rei Leão.
6. O Camaleão

O Camaleão borra a linha que separa o aliado do inimigo. Na sua concepção clássica, o Camaleão começa como aliado, mas quando o Herói precisa de ajuda ele revela sua natureza de antagonista. A função de Camaleão beneficia histórias ao criar mistério e relações interessantes entre os personagens, somando tensão a cenas que o leitor acredita estar povoada por aliados. O contrário também é verdadeiro, quando um personagem que se considerava inimigo se revela um aliado, é a função de Camaleão que está em atividade.
Exemplos de Camaleões do cinema e da literatura: Gollum, de O Senhor dos Anéis; Varys de A Guerra dos Tronos; o Agente 006 para quem lembra de Goldeneye.
7. O Guardião do Limiar

O Guardião do Limiar é aquele que providencia testes e obstáculos ao herói antes dele chegar ao seu objetivo. Eles podem aparecer a qualquer momento da história, mas normalmente estão associados a novas etapas na aventura. Após vencê-los, o herói estará em situação ainda mais complicada, embora tenha descoberto novas habilidades que servirão para alcançar seus objetivos. A mensagem dos Guardiões ao herói é clara: "volte pra casa e esqueça a sua missão". Ao mesmo tempo, lembram ao leitor que por aquele caminho há perigo.
Os Orcs de Sauron em Senhor dos Anéis são bons exemplos.
8. A Sombra

Possivelmente os arquétipos mais importantes em qualquer história além do Herói, a Sombra é o antagonista da história. A função dela é criar conflito, dar ao herói um obstáculo direto para enfrentar.
A Sombra é particularmente efetiva se ela reflete o herói de alguma forma. Mostra ao leitor o que aconteceria com o Herói caso ele sucumba às tentações e siga pelo caminho errado. A Sombra serve ainda para revelar os conflitos internos do herói, fazendo sua vitória ainda mais gratificante.
Como usar os Arquétipos
Como explicado anteriormente, arquétipos são funções dramáticas que personagens podem vir a ter. Personagens bem definidos provavelmente terão uma ou mais dessas funções dramáticas, por isso sugiro você utilizar os arquétipos simplesmente como ponto de partida para criação dos personagens.
Personagens que são descritos apenas por sua função são rasos e unidimensionais. São as características conflitantes que você dar a cada um deles que farão os personagens ficarem mais interessantes. Uma vez começado o processo de desenvolver e descobrir a personalidade de cada um de seus personagens, os arquétipos podem vir a desaparecer por completo, sendo substituídos pela figura bem desenvolvida do personagem que você criou.
Caso tenha mais interesse em ler sobre os arquétipos, sugiro a leitura do livro A Jornada do Herói: Estrutura Mítica para Escritores, de Cristopher Vogler. Ou mesmo o livro Roteirista Empreendedor, do meu parceiro e fundador do site Bill Labonia, aonde ele explica a utilização do Monomito para roteiristas iniciantes.
Enquanto isso, como sempre, mantenha-se escrevendo.
Até breve.